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Quem define a agenda das organizações? A cooperação para o desenvolvimento à deriva (Le Monde Diplomatique, 1/12/2017)

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A falta de financiamento não é o único problema que merece reflexão quando se fala de cooperação para o desenvolvimento.
A perda de autonomia relativa na definição das agendas das organizações não-governamentais que trabalham no terreno ou a sua inserção em processos de financeirização internacionais levantam questões importantes.

Em matéria de cooperação para o desenvolvimento internacional há um antes e um depois de 20151. A nova Agenda 2030, amplamente discutida e finalmente decidida em três fora internacionais em 2015 – a Cimeira sobre Financiamento para o Desenvolvimento (Adis Abeba, em Julho), a Assembleia-Geral das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Nova Iorque, Setembro) e a Conferência sobre o Clima (Paris, Dezembro) –, procurou renovar o compromisso internacional com o desenvolvimento para a próxima década e meia e esbater a divisão planetária entre Norte e Sul.

Os conceitos de Cooperação para o Desenvolvimento e de Ajuda ao Desenvolvimento, entendidos até 2015 como a transferência de recursos públicos do Norte para o Sul global, sofreram alterações significativas. A crise económica que se abateu sobre as economias europeias e norte-americana pairou como uma nuvem durante as negociações dos três encontros, assim como a crescente relevância de economias emergentes como o Brasil, a China ou a Índia nos processos de desenvolvimento dos países parceiros, sobretudo em África Embora o enfoque na erradicação da pobreza se mantenha, há dimensões que merecem igualmente a atenção da «comunidade internacional» na agenda pós-2015, como as desigualdades sociais que se acentuam na Europa e no mundo, a defesa dos Direitos Humanos enquanto pilar da dignidade das pessoas e dos povos e as questões relacionadas com a paz e a segurança à escala global.

A Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD), que até 2015 servia de barómetro ao compromisso dos diferentes países doadores do Comité de Ajuda ao Desenvolvimento da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (CAD/OCDE), como Portugal, com os países parceiros, tornou-se praticamente irrelevante e a meta de compromisso delineada para 2015 foi projectada para um futuro mais distante, sem consequências práticas para os Estados que não a cumpriram.

Embora a maior parte dos Estados do CAD/OCDE não tenha alcançado as metas da APD, este instrumento financeiro é (ainda) de enorme importância para os países em desenvolvimento, sobretudo para os ditos países menos avançados (Least Developed Countries) que têm dificuldade em atrair investimento ou outro tipo de financiamento internacional. Além de ser a expressão máxima da solidariedade a nível global, quando desprovida de interesses meramente económicos, a APD pode – e deve-ser utilizada em sectores-chave para a erradicação da pobreza, a promoção e defesa dos Direitos Humanos e a diminuição das desigualdades sociais.

No passado mês de Novembro, o Grupo de Trabalho AidWatch da Plataforma Portuguesa das ONGD (Organizações Não-Governamentais para o Desenvolvimento) apresentou o relatório anual «Aid Watch», em que analisa o início da era pós-2015 da Cooperação Portuguesa e com o qual procura debater e apresentar propostas concretas para a melhoria de uma política que tem conhecido avanços e recuos ao longo da última década.

A irrelevância da APD portuguesa

Portugal nunca alcançou a meta de alocação de 0,7% do seu rendimento nacional bruto (RNB) à APD. A conjuntura económica desfavorável que o país experimentou, e que levou ao pedido de ajuda financeira em 2011, teve naturalmente' impacto nos compromissos que o país assinou no domínio da cooperação para o desenvolvimento. Contudo, a recuperação que tem vindo a realizar desde a saída do programa de assistência, em 2014, não teve ainda tradução positiva no volume de RNB canalizado para a APD. Pelo contrário, em 2015, registou-se um corte de cerca de 13% da APD portuguesa face ao ano anterior, justificado pelos efeitos do programa de ajustamento financeiro e pela não utilização de algumas linhas de crédito ou de empréstimos ooncessionais colocadas à disposição dos países parceiros. Desde 2011 que o volume da APD tem diminuído consecutivamente até atingir os níveis mais baixos de sempre em 2015 e 2016, quando se fixou nos 0,16% e 0,17%, respectivamente, ou seja, num dos mais baixos da Europa.

Quando se analisa em detalhe a qualidade dos fluxos de APD, verifica-se que mais de metade (51%, em 2016) permanece ligada a interesses económicos de Portugal, apesar das recomendações do CAD/OCDE para o desligamento progressivo da APD. Isto significa, por exemplo, que os empréstimos concessionais que Portugal disponibiliza aos países parceiros, contabilizados como APD, são utilizados em grande parte para a aquisição de bens e serviços a empresas portuguesas, subjugando a cooperação portuguesa ao esforço de internacionalização do tecido empresarial português.
Esta tendência tem várias implicações práticas para o país parceiro e desvirtua o próprio conceito de Cooperação para o Desenvolvimento, uma vez que não apoia necessariamente actividades de erradicação da pobreza e de promoção de direitos humanos, está sobretudo focada em países de rendimento médio (e não necessariamente nos países menos avançados como recomendam os compromissos internacionais), privilegia as empresas do país doador ao invés de apoiar o desenvolvimento do tecido empresarial dos países parceiros e não são raros os casos em que a maquinaria ou os materiais adquiridos não se adequam às condições reais do terreno (por exemplo, aquisição de máquinas que requerem electricidade em permanência).

Em termos gerais, a APD portuguesa está abaixo dos 0,20% desde 2014, no sentido inverso aos compromissos assumidos a nível internacional até 2015, e tornou-se praticamente irrelevante no cômputo geral da politica da cooperação portuguesa. Este revés acontece numa altura em que, no seio do CAD/OCDE, se discute a modernização do conceito de APD e a actualização do sistema de reporte estatístico, de forma a induir outros recursos e instrumentos que os Estados são capazes de mobilizar para o esforço de desenvolvimento. Portugal tem sido um dos Estados mais entusiastas nesta discussão, e na adopção da nova medida estatística – a TOSSD – Total Official Support for Sustainable Development Na prática, e como o nome indica, trata-se de um novo instrumento financeiro agregador de todos os fluxos públicos e privados canalizados para a concretização dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável. A medida poderá comportar fluxos como os empréstimos e donativos concessionais, os empréstimos não-concessionais, os instrumentos do sector empresarial (como as garantias, etc), os fluxos mobilizados por parcerias público-privadas e a ajuda humanitária.

Porém, ainda não é clara, nem consensual, a sua extensão aos créditos à exportação. As Organizações da Sociedade Civil (OSC) têm alertado para os riscos da diluição do conceito de APD e da potencial utilização de fundos públicos para alavancar outros fluxos, nomeadamente do sector privado.

O investimento na Cooperação multilateral com os olhos postos na Europa

O parco aumento da APD portuguesa, registado em 2016, deve-se sobretudo à disponibilização de mais verbas para a Cooperação multilateral, o que vem contrariar as afirmações públicas do ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, que refere que «a prioridade número um da nossa cooperação é a parceria bilateral com cada um dos países africanos de língua portuguesa e com Timor-Leste», embora admita que «há novas fronteiras possíveis, seja do ponto de vista geográfico, seja do estratégico»2.

As «novas fronteiras», a que se refere o ministro dos Negócios Estrangeiros, dizem respeito não só a novas geografias da cooperação portuguesa, como é o caso da Colômbia e outros países da América Latina, mas também a uma «grande aposta na Cooperação Delegada», para recuperar as palavras da secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, Teresa Ribeiro. Trata-sede uma estratégia de gestão de fundos da União Europeia (UE), que permite que a Comissão Europeia delegue financiamento a um determinado Estado-membro para a execução de programas de cooperação (através de «acordos de delegação»).

Portugal participa actualmente em oito destes acordos da Cooperação Delegada, em áreas como a governação económica em Timor-Leste, a luta contra o crime transnadonal organizado na América Latina ou o ensino técnico e formação profissional em Angola, apenas para citar os programas com orçamentos mais elevados. Os programas são geridos pelo Camões - Instituto da Cooperação e da Língua, descapitalizado de recursos humanos desde a decisão de fusão do Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento (IPAD) e do Instituto Camões, colocando a agência estatal perante uma situação que não se coaduna com gestão e coordenação destes projectos de Cooperação Delegada As Organizações da Sociedade Civil portuguesas, nomeadamente através da Plataforma Portuguesa das ONGD, têm questionado o governo sobre esta aposta da cooperação portuguesa, uma vez que não existe praticamente reflexão interna sobre as implicações da abordagem e a margem de manobra para influenciar os processos e a definição dos programas é quase nula. Os sectores de intervenção, as áreas geográficas, os montantes a mobilizar e as áreas prioritárias são definidas em Bruxelas, com participação dos diferentes Estados-membros, em negociações envoltas em secretismo até à fase de apresentação. Isto significa que não existe qualquer partilha prévia de informação - preliminar ou intermédia - que permita, neste caso às ONGD, participar na definição e na discussão do papel da cooperação portuguesa nesses programas.

Além da cooperação delegada, Portugal participa ainda em fundos fiduciários (trust funds) que, na prática, são instrumentos financeiros utilizados pela União Europeia e outras organizações para assegurar uma resposta mais célere a determinadas situações de emergência Controlo das migrações no Sael, construção da paz na Colômbia e apoio a refugiados no Líbano, Turquia, Iraque e Egipto são as três áreas que contam actualmente com a participação portuguesa, sendo que o fundo fiduciário União Europeia-África Migrações tem uma dimensão financeira muito expressiva, contando com cerca de 2,9 mil milhões de euros (450 mil euros de co-financiamento português).

Este programa revela uma outra tendência crescente de utilização da cooperação para o desenvolvimento no controlo das migrações e na securitização das fronteiras (internas e externas) da União Europeia. A sociedade civil europeia tem alertado para esta crescente instrumentalização da cooperação para o desenvolvimento e da própria Ajuda Pública ao Desenvolvimento. A narrativa do Consenso Europeu para o Desenvolvimento e, mais recentemente, da Parceria União Europeia-África associam de forma implícita a necessidade de gestão das fronteiras à ajuda ao desenvolvimento, nomeadamente no que diz respeito aos países vizinhos da União Europeia. Diversos activistas africanos e europeus têm denunciado estas situações a que a sociedade civil, sobretudo as ONGD, não poderá ficar indiferente. A tentativa de externalização das fronteiras é urna realidade, dificultando a utilização de canais de passagem seguros e colocando em perigo a vida de milhões de pessoas, corno o recente caso noticiado da venda de pessoas na Líbia, que é actualmente um dos principais países de passagem de migrantes africanos.

O ambiente (des)favorável às Organizações da Sociedade Civil

Noutra vertente, o «Relatório AidWatch» debruça-se sobre o ambiente favorável (uma expressão do inglês enabling environment) às Organizações da Sociedade Civil que diz respeito às condições - jurídicas, organizacionais, financeiras, políticas e culturais - que se relacionam entre si e que promovem ou que afectam a capacidade dos actores de desenvolvimento para se envolverem de uma forma sustentável e eficaz nos processos de Desenvolvimento.

A nível global, esse espaço tem diminuído significativamente nos últimos anos, sendo especialmente preocupante nos países em Desenvolvimento, porém com eco também em alguns países desenvolvidos, como os Estados Unidos ou até mesmo Espanha (por exemplo, com a aprovação da Global Gag Rule e da Ley Morriam, respectivamente).

A Freedom House apelida esta tendência como «o regresso à era do punho de ferro» e a aliança global de Sociedade Civil CIVICUS, no relatório sobre o estado da sociedade civil à escala global, refere que as organizações e os movimentos sociais enfrentaram, em 2016, restrições sem precedentes. Alguns números permitem perceber o actual panorama internacional: apenas 26 países (21 dos quais são europeus, incluindo Portugal) conferem abertura à actuação cívica, num conjunto de 195 países analisados; entre 2012 e 2015, foram adoptadas 120 leis restritivas às OSC, um terço das quais no que diz respeito ao financiamento internacional de OSC nacionais (na China e em Angola, para citar alguns exemplos); e, só em 2016, as restrições de viagens de membros da sociedade civil e activistas duplicou face ao ano anterior.

As tendências de financiamento das OSC, nomeadamente das ONG, são outro indicador que nos permite identificar o ambiente favorável e o nível de compromisso do Estado com a sociedade civil. O reconhecimento do seu papel enquanto actor de desenvolvimento tem-se traduzido num esforço de inclusão na agenda de Cooperação para o Desenvolvimento dos Estados doadores. Porém, tem-se assistido a uma crescente tendência de canalização de fundos através das ONG, em detrimento de disponibilização de fundos para as ONG, que lhes permitiriam definir, desenhar e implementar os programas da sua própria iniciativa No caso português, dados de 2015 indicam que cerca de 99% do financiamento é canalizado através das OSC, contra cerca de 1% disponibilizado para projectos da iniciativa de ONGD nacionais, ou seja, através de linhas de financiamento abertas para projectos propostos pelas organizações. Esta tendência acarreta riscos, no que diz respeito à autonomia das ONGD para prosseguirem com as suas estratégias e planos de trabalho, nomeadamente com os parceiros no terreno, e compromete o direito de iniciativa.

Neste contexto, as ONGD podem ficar reféns da agenda do Estado e, consequentemente, da União Europeia, nomeadamente perante as recentes opções estratégicas de intervir noutras geografias em programas de cooperação delegada, como temos vindo a constatar; aliada a um fraco diálogo e inclusão das ONGD na definição estratégica da política da cooperação portuguesa Perante este cenário, a política da cooperação portuguesa carece de uma reflexão estratégica mais profunda, que inclua outros actores envolvidos nos processos de Desenvolvimento, nomeadamente as ONGD. O Fórum da Cooperação, cujo mandato foi desenhado nesse sentido, não cumpre ainda o seu papel de auscultação e de debate de uma política à deriva, embora vital para o relacionamento de Portugal com o mundo.

Ana Filipa Oliveira - Membro da direcção da Plataforma Portuguesa das ONGD e investigadora na Associação para a Cooperação Entre os Povos (ACEP).

1) Ler «Financiar o desenvolvimento: business as usual ou novo compromisso?», Le Monde diplomatique edição portuguesa, Julho de 2015.
2) Discurso público no Camões Instituto da Cooperação e da Língua, na apresentação das Linhas de Co-financiamento para Apoio a Projectos das ONGD Portuguesas, a 16 de Novembro de 2016.

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